Estado de sonambulismo
Um Caso de Possessão
SENHORITA JÚLIA

Dissemos que não havia possessos no sentido vulgar do termo, mas subjugados. Queremos reconsiderar esta asserção, posta de maneira um tanto absoluta, já que agora nos é demonstrado que pode haver verdadeira possessão, isto é, substituição, embora parcial, de um Espírito encarnado por um Espírito errante. Eis um primeiro fato que o prova, apresentando o fenômeno em toda a sua simplicidade.

Várias pessoas se achavam um dia na casa de uma senhora, médium sonâmbula. De repente esta assumiu atitudes francamente masculinas, mudou a voz e, dirigindo-se a um dos assistentes, exclamou: “Ah! meu caro amigo, como estou contente por te ver!” Surpresos, perguntam o que isto significa. A senhora continua: “Como! meu caro, não me reconheces? Ah! é verdade; estou coberto de lama! Sou Carlos Z...” A este nome os assistentes se lembraram de um senhor, morto alguns meses antes, vitimado por um ataque de apoplexia, à beira de uma estrada; tinha caído num fosso, de onde lhe retiraram o corpo coberto de lama. Declarou que, querendo conversar com seu velho amigo,aproveitou o momento em que o Espírito da senhora A..., a sonâmbula, estava afastado de seu corpo, para tomar-lhe o lugar. Com efeito, tendo-se repetido a cena vários dias seguidos, a Sra. A... de cada vez tomava as poses e maneiras habituais do Sr. Charles, apoiando-se no encosto da poltrona, cruzando as pernas, torcendo o bigode, passando os dedos pelos cabelos, de sorte que, salvo as roupas femininas, poder-se-ia crer estar diante do Sr. Charles. Contudo, não havia transfiguração, como vimos em outras circunstâncias. Eis algumas de suas respostas:

P. – Já que tomastes posse do corpo da Sra. A...,poderíeis nele permanecer?
Resp. – Não, mas vontade não me falta.

P. – Por que não o podeis?
Resp. – Porque seu Espírito está sempre ligado ao seu corpo. Ah! se eu pudesse romper esse laço, eu lhe pregaria uma peça.

P. – Que faz durante este tempo o Espírito da Sra. A...?
Resp. – Está aqui ao lado, olhando para mim e rindo por me ver em suas vestes.

Estas conversas eram muito divertidas. O Sr. Charles tinha sido um bon vivant e não desmentia seu caráter. Entregue à vida material, era pouco adiantado como Espírito, mas bom por natureza e benevolente. Apoderando-se do corpo da Sra. A..., não tinha qualquer intenção má, de sorte que aquela senhora nada sofria com a situação, a que se prestava de bom grado. É bom que se diga que ela não conhecera o Sr. Charles e não podia estar a par de suas maneiras. É ainda de notar que os assistentes não pensavam nele, a cena não foi provocada e ele veio espontaneamente.

Aqui a possessão é evidente e ressalta ainda melhor dos detalhes, cuja enumeração seria demasiado longa; mas é uma possessão inocente e sem inconvenientes. Já o mesmo não ocorre quando se trata de um Espírito maléfico e mal-intencionado. Pode ter conseqüências tanto mais graves quanto mais tenazes são esses Espíritos, o que muitas vezes se torna difícil livrar o paciente, do qual fazem sua vítima. Eis um exemplo recente, que nós mesmos tivemos oportunidade de observar e que se constituiu em sério objeto de estudo para a Sociedade de Paris:

A senhorita Júlia, doméstica, nascida na Sabóia, com vinte e três anos, caráter muito afável, sem qualquer instrução, desde algum tempo era susceptível a acessos de sonambulismo natural, que duravam semanas inteiras. Nesse estado consagrava-se a seu trabalho habitual, sem que as pessoas estranhas desconfiassem de sua situação; seu trabalho era até mais cuidadoso; sua lucidez, notável; descrevia lugares e acontecimentos a distância com perfeita exatidão.

Há cerca de seis meses foi acometida de crises de caráter muito estranho, que sempre ocorriam no estado sonambúlico, o qual se tornara, de certo modo, seu estado normal. Contorcia-se e rolava pelo chão, como a se debater sob a opressão de alguém que a quisesse estrangular e, de fato, apresentava todos os sintomas do estrangulamento. Acabava vencendo esse ser fantástico, agarrava-o pelos cabelos, acabrunhava-o com golpes, injúrias e imprecações, apostrofando-o incessantemente com o nome de Fredegunda, infame regente, rainha impudica, criatura vil e manchada por todos os crimes, etc. Tripudiava como se a pisoteasse com raiva, arrancando-lhe as roupas e os adereços. Coisa bizarra, tomando-se ela própria por Fredegunda, golpeava-se repetidamente nos braços, no peito e no rosto, dizendo: “Toma! toma! é bastante infame Fredegunda? Queres sufocar-me, mas não o conseguirás; queres meter-te em minha caixa, mas eu te expulsarei dela.” Minha caixa era o termo de que se servia para designar o seu corpo. Nada poderia pintar melhor o acento frenético com o qual, rangendo os dentes, ela pronunciava o nome de Fredegunda, nem as torturas que sofria nesses momentos.

Um dia, para ver-se livre de sua adversária, tomou de uma faca e tentou ferir-se; foi detida a tempo, evitando-se um acidente. Coisa não menos notável é que jamais tomou qualquer dos presentes por Fredegunda; a dualidade era sempre nela mesma e era contra si mesma que dirigia o seu furor quando o Espírito estava nela, e contra um ser invisível quando dele ela se havia desembaraçado. Para os outros era meiga e benevolente, mesmo nos momentos de maior exasperação.

Essas crises, verdadeiramente aterradoras, muitas vezes duravam horas e se repetiam várias vezes por dia. Quando acabavam por vencer Fredegunda, esta caía num estado de prostração e de acabrunhamento de que só saía pouco a pouco, mas que lhe deixava uma grande fraqueza e dificuldade de falar. Sua saúde estava profundamente alterada; nada podia comer e por vezes ficava oito dias sem alimentar-se. Para ela as melhores iguarias tinham gosto horrível, levando-a a rejeitá-las. Dizia que era obra de Fredegunda, que a queria impedir de comer.

Dissemos acima que a moça não recebeu qualquer instrução. Em vigília jamais ouvira falar de Fredegunda, nem de seu caráter, nem do papel que representou. Ao contrário, em estado sonambúlico, sabe-o perfeitamente e diz ter vivido em seu tempo. Não era Brunehaut, como a princípio se supôs, mas outra pessoa,ligada à sua corte.

Outra observação, não menos importante, é que,quando começaram as crises, a senhorita Júlia jamais se havia ocupado de Espiritismo, cujo nome lhe era desconhecido. Ainda hoje, em vigília, ela lhe é estranha e nele não crê. Só o conhece no estado sonambúlico, e somente depois que começou a ser cuidada. Assim, tudo quanto disse foi espontâneo.

Diante de uma situação tão estranha, uns atribuem o estado dessa moça a uma afecção nervosa; outros a uma loucura de caráter especial, opinião que, à primeira vista, tinha uma aparência de realidade. Declarou um médico que, no estado atual da Ciência, nada podia explicar semelhantes fenômenos, e que não via nenhum remédio. Todavia, pessoas experimentadas no Espiritismo reconhecem sem dificuldade que ela estava sob o império de uma subjugação das mais graves, e que lhe poderia ser fatal. Sem dúvida, quem não a tivesse visto senão nos momentos de crise e só tivesse considerado a estranheza de seus atos e palavras, teria dito que era louca e lhe haveria infligido o tratamento dos alienados que, sem sombra de dúvida, teria provocado uma loucura verdadeira; mas esta opinião deveria ceder diante dos fatos.

No estado de vigília sua conversa é a de uma pessoa de sua condição e em conformidade com a sua falta de instrução; sua inteligência chega a ser vulgar. Já no estado de sonambulismo o quadro se modifica completamente: nos momentos de calma ela raciocina com muito senso, justeza e verdadeira profundidade. Ora,seria loucura singular esta que aumentasse a dose de inteligência e de julgamento. Só o Espiritismo pode explicar essa aparente anomalia. No estado de vigília, sua alma ou Espírito está comprimido por órgãos que lhe não permitem senão um desenvolvimento incompleto; no estado de sonambulismo, a alma, emancipada, está em parte liberta de seus laços e goza da plenitude de suas faculdades. Nos momentos de crise, suas palavras e atos são excêntricos somente para os que não crêem na ação dos seres do mundo invisível. Vendo apenas o efeito, e não remontando à causa, eis por que todos os obsidiados, subjugados e possessos passam por loucos. Nos manicômios sempre houve, em todos os tempos, pretensos loucos dessa natureza e que seriam facilmente curados se não nos obstinássemos a neles ver apenas uma doença orgânica.

Como, porém, a senhorita Júlia não tivesse recursos,uma família de verdadeiros e sinceros espíritas concordou em tomá-la a seu serviço, mas, na sua situação, ela deveria ser muito mais um estorvo do que uma utilidade, e era preciso um verdadeiro devotamento para cuidar dela. Mas essas pessoas foram bem recompensadas, primeiro pelo prazer de praticar uma boa ação, depois pela satisfação de haver contribuído poderosamente para a sua cura, hoje completa. Dupla cura, porque não só a senhorita Júlia se libertou, mas sua inimiga converteu-se a melhores sentimentos.

Eis o que testemunhamos numa dessas lutas terríveis,que não durou menos de duas horas, quando pudemos observar o fenômeno nos mínimos detalhes e no qual reconhecemos de imediato uma completa analogia com os dos possessos de
Morzine39.

A única diferença é que em Morzine os possessos se entregavam a atos contra os indivíduos que os contrariavam, e falavam do diabo que tinham em si, pois os haviam convencido de que era o diabo. Em Morzine a senhorita Júlia teria chamado Fredegunda de Diabo.

Num próximo artigo exporemos com detalhes as diversas fases desta cura e os meios empregados para tal fim; além disso, relataremos as notáveis instruções que os Espíritos deram a respeito, assim como as importantes observações que ensejaram, concernentes ao magnetismo.
R.E. , dezembro de 1863, p. 499